19 de jul. de 2010

Foi (des)propósito



Ela saiu de casa contrariada para comprar absorventes. Ele se arrastou para descer e ir comprar um efervescente para curar a ressaca. Eram vizinhos. Não sabiam. Se esbarraram na farmácia da esquina. Ele cedeu a vez a ela na fila do caixa. Ela agradeceu. Ele desejou que não estivesse com a ressaca estampada na cara. Mas estava. Ela desejou não estar vestindo o seu moletom mais surrado e sua havaiana-rosa-choque-velha-de-guerra. Mas estava. O caixa ao lado desocupou. “Próximo!”. Pagaram ao mesmo tempo. Saíram juntos da loja. Ela foi andando um pouco mais a frente e apostou consigo mesma que ele estava olhando para sua bunda. Ele estava, e até que gostou. Ela também, de ser desejada. Só não gostou mais porque estava vestindo aquele moletom, logo aquele…

Ele acelerou o passo. Ela desacelerou. Ele se ofereceu para carregar sua sacola. Ela recusou. Mas sorriu. “Não precisa, tá leve!”. Ele sorriu de volta com algum esforço, sentindo náuseas. Ela percebeu, achou melhor não perguntar nada. Ele se adiantou: “Gastrite”. Mentira, era o fígado reclamando da noite passada. Ela contou que só ficou boa do estômago com muito chá de boldo. Ele se fingiu interessado. “É mesmo?”. Ela fingiu acreditar no interesse dele. Viraram a esquina. Pararam na portaria do mesmo prédio. “Coincidência!”.Entraram.

Ele abriu a porta do elevador. Ela entrou. Apertou o 8. “Fico aqui”. Ele perguntou se talvez ela não teria folha de boldo em casa. Ela disse que não. Ele se odiou um segundo depois de ter perguntado. “Mas posso ver se consigo pra você…” – ela acrescentou antes de sair, se odiando por ter negado no segundo anterior.

Sorriram sem conseguir disfarçar que o boldo era só disfarce.

E foi com tamanho despropósito que eles começaram a revezar as noites nas camas um do outro. Ela andava desejando um novo amor não era de hoje. Ele andava cansado das noites vazias, de acordar solitário e com a impressão de ter um elefante sentado acomodadamente na sua cabeça. Ela pensou que encontraria alguém interessante numa galeria de arte, no teatro, talvez… Ele ficaria mais contente se ela fosse loira, e um pouco menos magra, talvez… Ele apareceu com olhos fundos de ressaca, mas até que era bem bonitinho, cedeu seu lugar na fila, ofereceu de carregar a sacola dela e abriu a porta do elevador para ela entrar primeiro. “É o homem da minha vida!”. Ela não tinha uma bunda exatamente redonda, mas era bonita, além disso, sua blusa marcava seios rijos e lindos. “Preciso levar essa mulher pra cama!”

Ela descobriu que ele não só era gentil e educado, como sabia cozinhar, era inteligente, bem dotado e bom de cama, sabia fazê-la rir como nenhum outro a fez antes, e – muito importante – não era casado. Ele descobriu que ela não tinha só peitos durinhos, mas até que transava bem direitinho, tinha uma bela tatuagem na virilha, não era dessas mulheres frescas das quais ele andava cansado, era bastante culta, gostava dos mesmos livros que ele e não era uma ciumenta neurótica como as outras. Apaixonaram-se.

Não foi de propósito e mesmo assim – e por isso mesmo foi lindo. O acaso ignora os planos e as metas, ele ri da cara dos propósitos. O acaso é o sarcasmo em pessoa, fantasiado de coincidência, irônicamente vestido à caráter.

Até foi quase propositalmente que se apaixonaram, quando fizeram a soma de qualidades + vontades, mas foi o despropósito que tratou de esbarrá-los na esquina de casa. E o despropósito estava de havaianas rosa choque, com uma tremenda ressaca, dessas que faz o sujeito prometer que nunca mais vai beber na vida, tinha um pacote de absorvente nas mãos, vestia o seu moletom mais surrado, aquele, sabe…? Que é também o mais confortável e aconchegante de todo o guarda-roupas…

… parecido com o amor que nem sempre aparenta vestir bem, não costuma andar na moda, mas, se duvidar, é a malha mais gostosa de todas e caí bem em você como nenhuma outra.

Roberta Simoni


fonte: http://janeladecima.wordpress.com/

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